Mais algumas observações sobre o desempenho do sistema de saúde português

O relatório OMS 2000

O estudo comparativo do desempenho de 191 sistemas de saúde publica pela OMS em 2000 é um documento histórico: (i) chama a atenção para a importância de substituir retórica fácil pela definição, medição e comparação efectiva dos desempenhos (ii) resultou de um esforço notável para juntar dados, estimar e fazer sentido de indicadores relacionados com o desempenho do sistema de saúde, (iii) assumiu os riscos políticos de ordenar países a partir de índices globais de desempenho com a intenção de "provocar" um debate informado sobre a evolução dos sistemas, (iv) enumerou os instrumentos de boa governação "responsáveis" pelos diferentes níveis de desempenho.

Este foi o primeiro ensaio de um empreendimento muito ambicioso. Naturalmente este estudo tem importantes limitações: (i) os dados disponíveis e estimativas utilizadas necessitam de ser robustecidas, (ii) dada a extensão do estudo os componentes qualitativos e interpretativos do estudo (país por país) forma frágeis ou inexistentes (iii) a validação dos resultado deixou muito a desejar.

Em relação a esta última questão existem dois aspectos que merecem uma atenção especial.

Os níveis de saúde são influenciados por muitas outras coisas que o orçamento dos serviços de saúde – as contribuições de Nolte e Mckee. 

Neste estudo desempenho é definido como um espécie de "macro-eficiência" ou seja a capacidade de transformar recursos em resultados. Os resultados definidos em função dos três grandes objectivos dos sistemas de saúde; melhor saúde, melhor resposta em serviços de saúde, maior justiça nas contribuições financeiras, estando os níveis de saúde fortemente ponderados no índice global de desempenho. No entanto na equação recursos /resultados, aqueles são representados essencialmente pelos orçamentos dos serviços de saúde, que representam tão-somente um dos factores que influenciam os níveis de saúde de um país – como por exemplo os níveis sócio-económicos, factores ambientais e os comportamentos em relação (alimentação, exercício físico, "acidentes", e algumas dependências).

O estudo de Nolte e Mckee agora publicado no BMJ procura utilizar como "resultas em saúde" somente aquelas causas de mortalidade que mais estreitamente podem ser relacionadas com a acção dos serviços de forma a emprestar maior coerência a equação "recursos/resultados" que agora passa a significar claramente "orçamento dos serviços de saúde/resultados da acção dos serviços de saúde".

É obvio pelos resultados deste estudo que esta correcções na fórmula do desempenho alteram substancialmente os "rankings" do relatório OMS/2000. No entanto Nolte e Mckee não se aventuram, e bem, a ir para além desta conclusão geral. De facto haverá agora que estudar mais detalhadamente as implicações que diferentes formas de ponderar as taxas de mortalidade em função da contribuição dos serviços de saúde para começar a fazer sentido das subidas e descidas dos "rankings" observados.  

A posição "12" de Portugal no ranking do "índice global" do desempenho dos sistemas de saúde não quer dizer o que parece.

No estudo OMS/2000 acima referido os seguintes em relação à realização dos três grandes objectivos de sistemas de saúde: resultados em saúde Portugal esta à volta da 30ª no objectivo "saúde – níveis e distribuição", entre 40ª e 50º quanto à resposta dos serviços de saúde, e em aproximadamente 60ª posição quanta à justiça da contribuição financeira. No entanto no cálculo do índice global dada à forte ordenação dada à saúde (resultados), os baixos valores do orçamento da saúde em termos absolutos quando comparado com outros países desenvolvidos (recursos financeiros), e aos nossos insuficientes níveis educativos quando comparados com outros países de desenvolvidos (factor que por afectar a capacidade de transformar recursos em resultados é utilizado para beneficiar, "por ajustamento", o índice global) este dispara "artificialmente" para 12º. Estas ordenações não me parecem fazer grande sentido.

No último relatório das Nações Unidas sobre "Desenvolvimento Humano" (2003),  Portugal aparece entre os 23 países mais desenvolvidos do planeta. É de facto na "casa dos vintes" que nos situamos em termos de desenvolvimento e também saúde. É de esperar que dificuldades de acesso aos serviços de saúde e a situação preocupante dos recursos humanos da saúde nos penalizem no indicador "resposta dos serviços de saúde", assim como o excesso do financiamento da saúde "do bolso das famílias" nos penalizem no indicador "justiça da contribuição financeira". Mas parece-me que as posições 50ª/60ª nestes últimos indicadores poderão ser um artefacto relacionado com a qualidade dos dados, tanto com é seguramente um artefacto de concepção a classificação de 12º no índice global de desempenho.

Implicações para as políticas de saúde   

As conclusões em termos de políticas de saúde destes estudos comparativas poderão talvez formular-se da seguinte forma:

  • Estudos comparativos deste tipo são um bom estimulo para aprofundar o nosso conhecimento sobre o factores que influenciam a evolução dos sistemas de saúde. Mas exigem uma interpretação elaborada. Não devem servir nem para presumir nem para mal-dizer.
  • Para serem úteis estes estudo têm que ser integrados em processo interpretativos qualitativos que incorporem não só indicadores quantitativos mas também avaliações da qualidade dos dispositivos da governação da saúde.
  • Os principais desafios do sistema de saúde português da actualidade são (i) melhorar o acesso aos cuidados de saúde, sem diminuir a qualidade e sem aumentar a contribuição financeira dos que menos podem e (ii) investir em saúde, especialmente em relação a estilos e condições de vida mais saudáveis e através de "redes de cuidados de proximidade".

Para mim estes desafios significam caminhar no sentido de uma reforma profunda dos SNS, que reforce os seus princípios fundacionais e altere radicalmente os seus modelos de organização e gestão, par e passo com um crescente empoderamento do cidadão. Isto é difícil. Exige um sistema político mais visionário e muito mais competente. Vender o SNS a pataco é mais fácil.